Segunda Pregação do Advento 2012 do Padre Raniero Cantalamessa, OFM Cap - 14/12/2012
Por Zenit.org
1. O Concílio: a hermenêutica da ruptura e a da continuidade
Nesta meditação, gostaria de refletir sobre o segundo maior motivo de
celebração deste ano: o 50º aniversário do começo do Concílio Vaticano
II.
Nas últimas décadas aumentaram as tentativas de fazer uma avaliação dos resultados do Concílio Vaticano II[1].
Não é o caso agora de continuar nesta linha, e nem sequer o tempo
disponível nos permitiria. Em paralelo com estas leituras analíticas,
houve, desde o começo do Concílio, a tentativa de uma avaliação
sintética, a busca, em outras palavras, de uma chave de leitura do
evento conciliar. Gostaria de inserir-me neste esforço e tentar, até
mesmo, uma leitura das diversas chaves de leitura.
Principalmente foram três as chaves de leitura: atualização
(aggiornamento), ruptura, novidade na continuidade. Ao anunciar o
Concílio ao mundo João XXIII usou repetidamente a palavra
“aggiornamento” (atualização), que, graças a ele, entrou para o
vocabulário universal. Em seu discurso de abertura do Concílio, deu uma
primeira explicação do que ele quis dizer com esse termo:
"O 21º Concílio Ecumênico quer transmitir integralmente, não em
partes, sem distorções, a doutrina católica [...]. Mas nós não devemos
somente preservar este tesouro precioso, como se nos preocupássemos
apenas da antiguidade, mas vigorosos, sem medo, devemos continuar no
trabalho que a nossa época exige, seguindo o caminho que a Igreja
percorreu por quase 20 séculos [... ]. É necessário que esta doutrina
certa e imutável, à qual devemos dar uma adesão de fé, seja aprofundada e
exposta como exigido pelos nossos tempos"[2].
Na medida em que os trabalhos e as sessões do Concílio progrediam
surgiram duas linhas opostas dependendo, de acordo com as exigências
expressadas pelo Papa, acentuava-se a primeira ou a segunda: ou seja, a
continuidade com o passado ou a novidade com relação a ele. No meio
desses últimos a palavra aggiornamento (atualização) acabou
sendo trocada pela palavra ruptura. Mas com um espírito e com tentativas
bem diferentes, de acordo com a própria orientação. Para a ala, assim
chamada progressista, tratava-se de uma conquista a ser comemorada com
entusiasmo; para o lado oposto, tratava-se de uma tragédia para toda a
Igreja.
Entre essas duas frentes – que concordavam com a afirmação do fato,
mas estavam opostos no juízo sobre ele – coloca-se a posição do
Magistério papal que fala de “novidade na continuidade”. Paulo VI, na Ecclesiam suam retoma a palavra “aggiornamento” (atualização) de João XXIII e fala que queria tê-la presente como “endereço programático”[3]. No começo do seu pontificado João Paulo II confirmou o juízo do seu antecessor[4]
e se expressou muitas vezes nessa mesma linha. Mas, foi principalmente o
atual Sumo Pontífice Bento XVI que explicou o que o Magistério da
Igreja entende por “novidade na continuidade”. Foi o que ele fez poucos
meses depois da sua eleição, no conhecido discurso programático à Curia
Romana do dia 22 de Dezembro de 2005. Escutemos algumas passagens:
“Surge a pergunta: por que a recepção do Concílio, em grandes partes
da Igreja, até agora teve lugar de modo tão difícil? Pois bem, tudo
depende da justa interpretação do Concílio ou como diríamos hoje da sua
correcta hermenêutica, da justa chave de leitura e de aplicação. Os
problemas da recepção derivaram do facto de que duas hermenêuticas
contrárias se embateram e disputaram entre si. Uma causou confusão, a
outra, silenciosamente mas de modo cada vez mais visível, produziu e
produz frutos. Por um lado, existe uma interpretação que gostaria de
definir "hermenêutica da descontinuidade e da ruptura"; não raro, ela
pôde valer-se da simpatia dos mass media e também de uma parte da
teologia moderna. [...] A hermenêutica da descontinuidade opõe-se à
hermenêutica da reforma ".
O papa admite que uma certa descontinuidade e ruptura ocorreu, mas
ela não abarca os princípios e as verdades fundamentais da fé cristã,
mas algumas decisões históricas. Entre as quais se encontra a situação
de conflito que se criou entre a Igreja e o mundo moderno, que culminou
na condenação total da modernidade sob Pio IX, mas também situações mais
recentes, como aquela criada pelos progressos da ciência, da nova
relação entre as religiões com as implicações que isso tem para o
problema da liberdade de consciência; e não por último, a tragédia do
holocausto que exigia um repensamento de atitudes para com o povo judeu.
Escreve:
“É claro que em todos estes setores, que no seu conjunto formam um
único problema, podia emergir alguma forma de descontinuidade que, de
certo modo, se tinha manifestado, de fato uma descontinuidade, na qual
todavia, feitas as diversas distinções entre as situações históricas
concretas e as suas exigências, resultava não abandonada a continuidade
nos princípios fato que facilmente escapa a uma primeira percepção. É
exactamente neste conjunto de continuidade e descontinuidade a diversos
níveis que consiste a natureza da verdadeira reforma”.
Se do plano axiológico, ou seja dos princípios e dos valores,
passamos ao plano cronológico, poderemos dizer que o Concílio representa
uma ruptura e uma descontinuidade com relação ao passado próximo da
Igreja e representa ao contrário uma continuidade com relação ao seu
passado remoto. Em muitos pontos, sobretudo no ponto central que é a
idéia da Igreja, o concílio quis fazer um retorno às origens, às fontes
bíblicas e patrísticas da fé.
A leitura do Concílio assumida pelo Magistério, ou seja, a da
novidade na continuidade, tinha tido um ilustre precursor no “Ensaio
sobre o desenvolvimento da doutrina cristã” do cardeal Newman, definido
muitas vezes, também por este, “o Pai ausente do Vaticano II”. Newman
demonstra que, quando se trata de uma grande ideia filosófica ou uma
crença religiosa, como é o cristianismo,
"não é possível julgar pelo seu começo qual seja a sua virtualidade e
as metas às quais tende. [...]. De acordo com as novas relações que ela
chega a ter, surgem perigos e esperanças e princípios antigos
reaparecem sob nova forma. Ela muda junto com eles para ficar sempre
idêntica a si mesma. Num mundo sobrenatural as coisas acontecem de forma
diferente, mas aqui sobre a terra viver é transformar-se e a perfeição é
o resultado de muitas transformações”[5].
São Gregório Magno antecipava, de certa forma, esta convicção quando afirmava que a Escritura “cum legentibus crescit”, cresce com aqueles que a lêem”[6];
ou seja, cresce a força de ser lida e vivida, na medida que surgem
novas perguntas e novos desafios da história. Portanto, a doutrina da fé
muda, mas para ficar fiel a si mesma; muda nas contingências
históricas, para não mudar na substância, como dizia Bento XVI.
Um exemplo trivial, mas indicativo é aquele do idioma. Jesus falava a
língua do seu tempo; não o hebraico que era a língua nobre e das
Escrituras (o latim do tempo!), mas o aramaico falado pelo povo. A
fidelidade a este dado inicial não podia consistir, e não consistiu, no
continuar a falar em aramaico a todos os futuros ouvintes do evangelho,
mas no falar grego ao Gregos, latim aos Latinos, armênio com os
Armênios, copto com os cóptos, e assim até os dias de hoje. Como dizia
Newman, é justamente mudando que muitas vezes se é fiel ao dado
original.
2. A letra mata, o Espírito vivifica
Com todo o respeito e admiração devidos à imensa e pioneira
contribuição do Cardeal Newman, a distância de um século e meio do seu
ensaio, e com o que o cristianismo viveu nesse meio tempo, não é
possível, ainda, não relevar também uma lacuna no desenvolvimento do seu
argumento: a quase total ausência do Espírito Santo. Na dinâmica do
progresso da doutrina cristã, ele não tem em conta com suficiente
clareza o papel de destaque que Jesus tinha reservado para o Paráclito
ao revelar aos discípulos aquelas verdades que eles ainda não podiam
“carregar o peso” e no conduzí-los “à toda a verdade” (Jo 16, 12-13).
De fato, o que é que permite resolver este paradoxo e falar de
novidade na continuidade, de permanência na mudança, a não ser o
Espírito Santo na Igreja? Santo Ireneu o tinha percebido perfeitamente
quando afirma que a revelação é como um “depósito precioso contido num
vaso de valor que, graças ao Espírito de Deus, rejuvenesce sempre e faz
rejuvener também o vaso que a contém”[7]. O Espírito Santo não
fala palavras novas, não cria novos sacramentos, novas intituições, mas
renova e vivifica perenemente as palavras, os sacramentos e as
instituições criadas por Jesus. Não faz coisas novas, mas faz novas
todas as coisas!

A insuficiente atenção ao papel do Espírito Santo explica muitas das
dificuldades surgidas na recepção do Concílio Vaticano II. A Tradição,
em nome da qual alguns rejeitaram o Concílio, era uma Tradição onde o
Espírito Santo não desempenhava nenhum papel. Era um conjunto de crenças
e de práticas fixadas uma vez por todas, e não a onda da pregação
apostólica que avança e se propaga nos séculos e, como toda onda, só
pode ser percebida em movimento. Congelar a Tradição e fazê-la partir,
ou terminar, a um certo ponto, significa fazer uma morta tradição e não
como a define Ireneu uma “viva Tradição”. Charles Péguy expressa, como
poeta, esta grande verdade teológica:
"Jesus não nos deu palavras mortas
Que devamos colocar em pequenas caixas (ou em grandes)
E que devemos conservar em óleo rançoso...
Como as múmias do Egito.
Jesus Cristo não nos deu enlatados de palavras para conservar.
Mas deu-nos palavras de vida para alimentar ...
Depende de nós, doentes e de carne,
Fazer viver e alimentar e manter vivas no tempo
Aquelas palavras pronunciadas vivas no tempo”[8]
Porém rapidamente é necessário dizer que também na frente de batalha
do extremismo oposto as coisas não são diferentes. Aqui se falava
voluntariamente do “espírito do Concílio”, mas não se tratava,
infelizmente, do Espírito Santo. Por “espírito do Concílio entendia-se o
de mais entusiasmo, de coragem inovadora, que não teria sido possível
entrar nos textos do Concílio por causa das resistências de alguns e do
necessário compromisso entre as partes.
Gostaria agora de ilustrar aquela que, para mim, parece ser a
verdadeira chave de leitura pneumática do Concílio, ou seja, qual é o
papel do Espírito Santo na atuação do Concílio. Retomando um pensamento
ousado de Santo Agostinho sobre o jargão paulino da letra e o Espírito
(2 Cor 3, 6), São Tomás de Aquino escreve:
"Por letra entende-se toda lei escrita que permanece fora do homem,
também os preceitos morais contidos no Evangelho; pelo qual a letra do
Evangelho mataria, se não se acrescentasse, dentro, a graça da fé que
cura”.[9]
No mesmo contexto, o santo doutor afirma: "A nova lei é principalmente a mesma graça do Espírito Santo que é dada aos crentes”[10].
Os preceitos do Evangelho são também a nova lei, mas em um sentido
material, quanto ao conteúdo; a graça do Espírito Santo é a nova lei em
sentido formal, enquanto que dá a força de colocar em prática os mesmos
preceitos evangélicos. É aquela que Paolo define “a lei do Espírito que
dá a vida em Cristo Jesus” (Rm 8, 2).
Este é um princípio universal que se aplica a toda lei. Se até mesmo
os preceitos evangélicos, sem a graça do Espírito Santo, seriam “letra
que mata”, o que dizer dos preceitos da Igreja, e o que dizer, no nosso
caso, dos decretos do Concílio Vaticano II? A "implementação", ou a
atualização do Concílio não acontece portanto diretamente, não necessita
procurá-la na aplicação literal e quase mecânica do Concílio, mas “no
Espírito”, entendendo com isso o Espírito Santo e não um vago “espírito
do concílio” aberto a todo subjetivismo. O Magistério papal foi o
primeiro a reconhecer esta exigência. João Paulo II, em 1981, escrevia:
"Todo o trabalho de renovação da Igreja, que o Concílio Vaticano II
providencialmente propôs e começou – renovação que deve ser ao mesmo
tempo “atualização” (aggiornamento) e consolidação no que é eterno e
constitutivo para a missão da Igreja – não pode realizar-se a não ser no
Espírito Santo, ou seja com a ajuda da sua luz e do seu poder”[11].
3. Onde buscar os frutos do Vaticano II
Aconteceu mesmo este suspirado “novo Pentecostes”? Um célebre
estudioso de Newman, Ian Ker, ressaltou a contribuição que pode ser dada
por ele não só para o entendimento do desenrolar-se do concílio, mas
também para o entendimento do pós-concílio[12]. Depois da
definição da infalibilidade papal no Vaticano I, em 1870, o cardeal
Newman refletiu sobre os concílios em geral e sobre o sentido das suas
definições. Sua conclusão: os concílios podem ter efeitos não
pretendidos por quem participou deles. Os participantes podem enxergar
muito mais, ou muito menos, do que os resultados que vão ser produzidos
por essas decisões.
Desta forma, Newman aplicava às definições conciliares o princípio do
desenvolvimento, que tinha proposto acerca da doutrina cristã em geral.
Um dogma, como qualquer outra grande ideia, não pode ser entendido por
completo antes de serem avaliadas as suas consequências e
desenvolvimentos históricos; para usar a sua comparação, só depois que o
rio parte do terreno acidentado em que nasceu e desce até encontrar o
seu leito mais amplo e profundo[13]. Aconteceu assim com a
definição da infalibilidade papal, que, no calor do momento, foi
entendida por muitos como algo maior do que aquilo que a Igreja e o
próprio papa quiseram apresentar. Ela não tornaria inútil qualquer
futuro concílio ecumênico, como alguns temiam ou esperaram. E disto, o
Vaticano II serve como confirmação[14].
Achamos uma singular confirmação no princípio hermenêutico de Gadamer
sobre a "história dos efeitos" (Wirkungsgeschichte), segundo o qual,
para se compreender um texto, deve-se levar em conta o conjunto de
efeitos que ele produziu na história, inserindo-se nessa história e
dialogando com ela[15]. Isto é o que acontece de forma exemplar
na leitura espiritual das Escrituras. Ela não explica o texto apenas à
luz das coisas que o precederam, como ocorre na leitura
histórico-filológica ao pesquisar as fontes, mas também à luz do que se
seguiu, explicando a profecia à luz do seu cumprimento em Cristo, e o
Antigo Testamento à luz do Novo.
Tudo isso lança uma luz única sobre o período pós-conciliar. Aqui
também as realizações reais se posicionam, talvez, de modo diferente do
que considerávamos inicialmente. Nós olhávamos para a mudança nas
estruturas e nas instituições, para uma distribuição diferente do poder,
para a língua a ser usada na liturgia, e não percebíamos o quanto essas
mudanças eram pequenas em comparação com o que o Espírito Santo estava
fazendo. Nós achávamos que romperíamos os odres velhos com as nossas
próprias mãos, quando Deus, na verdade, nos propunha o seu método de
romper os odres velhos pondo neles vinho novo.
Quando perguntados se houve um novo Pentecostes, devemos responder
sem hesitação: sim! Qual é o sinal mais convincente dele? A renovação da
qualidade da vida cristã, em todo lugar em que esse Pentecostes foi
acolhido. O fato doutrinariamente mais qualificativo do Vaticano II são
os dois primeiros capítulos da Lumen gentium, que
definem a Igreja como sacramento e como povo de Deus a caminho, sob a
orientação do Espírito Santo, inspirada pelos seus carismas, sob a
orientação da hierarquia. A Igreja, enfim, como mistério e instituição;
como koinonia mais do que hierarquia. João Paulo II relançou esta visão fazendo da sua implementação a prioridade no começo no novo milênio[16].
Perguntamos: onde é que esta imagem de Igreja passa dos documentos para a vida? Onde é que ela ganha “carne e sangue”[17]?
Onde é que a vida cristã é vivida de acordo com "a lei do Espírito",
com alegria e convicção, por atração e não por obrigação? Onde é que a
palavra de Deus é tida na mais alta honra, e manifestam-se os dons, e
sente-se mais forte a ânsia da nova evangelização e da unidade dos
cristãos?
Tratando-se de fatos interiores, do coração das pessoas, a
resposta definitiva para estas questões somente Deus possui. Devemos
repetir, sobre o novo Pentecostes, o que Jesus disse do reino de Deus:
"Ninguém dirá ‘Ei-lo aqui’, ou ‘Lá está ele’. O reino de Deus está no
meio de vós" (Lc 17, 21). Podemos, no entanto, captar os seus sinais,
auxiliados pela sociologia religiosa que lida com essas coisas. A partir
deste ponto de vista, a resposta para muitas daquelas perguntas é: nos
movimentos eclesiais!
Há algo que devemos precisar. Dos movimentos eclesiais, se não na
forma, certamente em substância, também fazem parte as paróquias,
associações de fiéis e novas comunidades em que se vive a mesma koinonia
e a mesma qualidade de vida cristã. Deste ponto de vista, movimentos e
paróquias não devem ser vistos em contraposição ou em competição uns com
os outros, mas unidos na realização, de um modo diferente, do mesmo
modelo de vida cristã. Entre eles, há também algumas das comunidades
ditas “de base”, aquelas em que o fator político não assumiu a
precedência sobre o religioso.
Devemos insistir no correto nome: movimentos "eclesiais", não
movimentos "leigos". A maioria deles é formada não por apenas uma, e sim
por todas as partes da Igreja: leigos, é claro, mas também bispos,
padres, freiras. Eles representam todos os carismas, o "povo de Deus" da
Lumen Gentium. É apenas por razões práticas que o Conselho
Pontifício para os Leigos se ocupa deles, dado que já existem as
congregações para o clero e para os religiosos.
João Paulo II viu nesses movimentos e comunidades paroquiais "os sinais de uma nova primavera da Igreja"[18]. O mesmo foi manifestado, várias vezes, pelo papa Bento XVI [19]. Na homilia da missa crismal da quinta-feira santa de 2012, ele disse:
“Quem olha para a história do pós-concílio pode reconhecer a
dinâmica da verdadeira renovação, que tantas vezes tomou formas
inesperadas em movimentos cheios de vida e que torna quase tangíveis a
inexaurível vivacidade da santa Igreja, a presença e a ação eficaz do
Espírito Santo”.
Falando dos sinais de um novo Pentecostes, não podemos deixar de
mencionar em particular, ainda que fosse apenas pela extensão do
fenômeno, a Renovação Carismática, que, mesmo não sendo um movimento
eclesial no sentido estrito e sociológico do termo (não tem um fundador,
uma estrutura e uma espiritualidade própria), é, ainda assim, uma
corrente de graça destinada a se dispersar na Igreja como uma descarga
elétrica na massa.
Em 1973, quando um dos arquitetos do concílio Vaticano II, o cardeal
Suenens, ouviu falar do fenômeno pela primeira vez, ele estava
escrevendo o livro "O Espírito Santo, fonte da nossa esperança", e nos
conta o seguinte em suas memórias:
"Eu parei de escrever o livro. Considerei uma questão de
coerência básica prestar atenção ao Espírito Santo, que pode se
manifestar de maneiras surpreendentes. Eu estava particularmente
interessado no despertar dos carismas, uma vez que o concílio tinha
impulsionado esse despertar".
E, depois de verificar em pessoa e viver de dentro aquela
experiência, compartilhada por milhões de outras pessoas, ele também
escreveu:
"Paulo e os Atos dos Apóstolos parecem de repente ganhar vida e se
tornar parte do presente. O que era realmente verdadeiro no passado
parece estar acontecendo de novo diante dos nossos olhos. É uma
descoberta da verdadeira ação do Espírito Santo, sempre atuante, como
Jesus prometeu. Ele mantém a sua palavra. É mais uma vez uma explosão do
Espírito de Pentecostes, uma alegria que tinha se tornado desconhecida
para a Igreja"[20].
Os movimentos eclesiais e as novas comunidades não esgotam todo o
potencial e as expectativas de renovação do concílio, mas respondem à
mais importante delas, pelo menos aos olhos de Deus. Eles não estão
livres de fraquezas e desvios parciais, mas que outra grande novidade na
história da Igreja não sofreu as falhas humanas? Não foi a mesma coisa
quando, no século XIII, apareceram as ordens mendicantes? Foram os papas
romanos, especialmente Inocêncio III, que reconheceram e acolheram
aquela graça pela primeira vez, incentivando o resto do episcopado a
fazer o mesmo.
4. Uma promessa cumprida
Qual é, então, o significado do concílio como conjunto dos documentos produzidos, Dei Verbum, Lumen Gentium, Gaudium et Spes, Nostra Aetate,
etc.? Vamos deixá-los todos de lado e esperar tudo do Espírito? A
resposta está contida na frase com que Agostinho resume a relação entre a
lei e a graça: "A lei foi dada para buscarmos a graça, e a graça foi
dada para observarmos a lei"[21]. O Espírito não dispensa o valor
da letra, ou seja, os decretos, o Vaticano II. Ao contrário, é ele quem
nos leva a estudá-los e a colocá-los em prática. E, de fato, fora do
ambiente acadêmico, onde são objeto de discussão e de estudo, é nas
realidades da Igreja mencionadas acima que eles são tidos de fato em
maior consideração.
Eu mesmo experimentei isto. Eu me livrei de preconceitos contra
judeus e protestantes, acumulados durante os anos de formação, não pela
leitura da Nostra Aetate, mas por ter feito também, à
minha humilde maneira e graças a alguns irmãos, a experiência do novo
Pentecostes. Depois eu senti a necessidade de reler a Nostra Aetate, como reli ainda a Dei Verbum
após o Espírito incutir em mim um novo amor pela palavra de Deus e pela
evangelização. O movimento, entretanto, pode acontecer nas duas
direções: alguns, para usar a linguagem de Agostinho, são incentivados a
partir da letra para buscar o Espírito, e outros são movidos pelo
Espírito a observar a letra.
O poeta Thomas S. Eliot compôs versos que podem nos iluminar quanto
ao significado das celebrações do 50º aniversário do Concílio Vaticano
II:
"Não devemos nos deter em nossa exploração,
E o fim do nosso explorar
Será chegar ao ponto donde partimos
E conhecer o lugar pela primeira vez" [22].
Depois de muitas explorações e controvérsias, somos levados de volta
para o lugar onde começamos: no caso, o concílio. Mas todos os trabalhos
em torno dele não foram em vão, porque, no sentido mais profundo, só
agora somos capazes de "conhecer o lugar pela primeira vez", de avaliar o
seu verdadeiro significado, desconhecido para os Padres do concílio.
Isso nos permite dizer que a árvore crescida do concílio é coerente
com a semente da qual nasceu. De onde nasceu o evento do concílio
Vaticano II? As palavras com que João XXIII descreve a emoção que
acompanhou "o súbito florescimento em seu coração e em seus lábios da
simples palavra concílio"[23] sugerem os sinais de uma
inspiração profética. Ao encerrar a primeira sessão, ele falou do
concílio como “um novo e desejado Pentecoste, que há de enriquecer a
Igreja com abundância de energias espirituais”[24].
Depois de 50 anos, não podemos deixar de constatar o cumprimento da
promessa feita por Deus à Igreja, pela boca de seu humilde servo, o
beato João XXIII. Se nos parecer exagerado falar de um novo Pentecostes,
diante de todos os problemas e conflitos que surgiram na Igreja depois e
por causa do concílio, o que temos a fazer é reler os Atos dos
Apóstolos e observar que os problemas e disputas já ocorreram após o
primeiro Pentecostes. E não menos acalorados que os de hoje!
[Tradução Equipe ZENIT]
[1] Cf. Il Concilio Vaticano II. Recezione e attualità alla luce del Giubileo (O Concílio Vaticano II. Recepção e atualidade á luz do Jubileu), aos cuidados de R. Fisichella, Ed. San Paolo 2000.
[2] João XXIII, Discurso de abertura do Concílio, n. 6,5 (Os
textos do Concílio são tirados da versão que se encontra no site oficial
do Vaticano).
[3] Paolo VI, Enc. Ecclesiam suam, 52; cf. também Insegnamenti di Paolo VI, vol. IX (1971), p. 318.
[4] João Paolo II, Audiência Geral do 1 Agosto 1979.
[5] J.H. Newman, Lo sviluppo della dottrina cristiana, (O progresso da doutrina cristã), Bolonha, Il Mulino 1967, pp.46 s.
[6] Gregorio Magno, Commento a Giobbe (Comentário a Jó) XX,1 (CC 143 A, p. 1003).
[7] S. Ireneo, Contra as heresias III, 24,1.
[8] Ch. Péguy, Le Porche du mystère de la deuxième vertu, La Pléiade, Paris 1975, pp. 588 s. (trad. ital. di M. Cassola, Milano 1978, pp. 60-62).
Ces paroles prononcées vivantes dans le temps ».
[9] Tomas de Aquino, Summa theologiae, I-IIae, q. 106, a. 2.
[10] Ibid., q. 106, a. 1; cf já Agostinho, De Spiritu et littera, 21, 36.
[11] Joao Paulo II, Carta apostólica A Concilio Constantinopolitano I, 25 março 1981, in AAS 73 (1981) 515-527.
[12] I. Ker, Newman, the Councils, and Vatican II, in “Communio”. International Catholic Review, 2001, págs. 708-728.
[13] Newman, op. cit. p.46.
[14] Exemplo ainda mais claro aconteceu no concílio ecumênico de Éfeso, em 431, com a definição de Maria como Theotokos,
Mãe de Deus. O concílio queria unicamente afirmar a unidade de pessoa
de Cristo. No entanto, deu imenso impulso ao crescimento da devoção
mariana e à construção das primeiras basílicas dedicadas a ela. A
unidade de pessoa de Cristo foi definida depois, em outro contexto e com
mais equilíbrio, no concílio de Calcedônia, em 451.
[15] Cf H.G. Gadamer, Wahrheit und Methode, Tübingen 1960.
[16] Novo millennio ineunte, 42.
[17] I. Ker, art. cit. p.727.
[18] João Paulo II, Novo millennio ineunte,46.
[19] Cf. discurso na vigília de Pentecostes em 2006.
[20] Card. L.-J. Suenens, Memories and Hopes, Dublin, Veritas 1992, pág. 267.
[21] Agostinho, De Spiritu et littera ,19,34.
[22] T.S. Eliot, Four Quartets V , The Complete Poems and Plays, Faber & Faber, Londres 1969, p.197.
[23] João XXIII, Discurso de abertura, Vaticano II, 11 de outubro de 1962, núm 3,1
[24] João XXIII, Discurso de encerramento do primeiro período do concílio, 8 de dezembro de 1962, núm. 3,6.